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sábado, 9 de março de 2013

Podia escrever um romance sobre isso

Era muito pequena quando os meus pais arrumaram malas e bagagens e se meteram num avião para Lisboa, numa leva que trouxe milhares de pessoas de Angola para Portugal. De barco, encaixotados, vieram um Ford Capri verde e uma máquina de lavar roupa, que chegou com um buraco no plástico redondo da porta.
http://postaisportugal.canalblog.com/albums/angola/photos/39957238-mossamedes0.html
 
Sou terrivelmente europeia. Ou Ocidental, talvez. Viveria feliz numa cidade como Paris, com os seus cafés e museus, o seu ritmo de cidade romântica, Nova Iorque, Londres. Sem o fantasma da praia a assombrar-me - porque por cá, Verão é praia, certo? Dispenso, eu que nasci em terra de praia e deserto. Não me sinto africana em nada, a não ser no prazer com que ouço os ritmos.

Ontem porém, outras pessoas que se recordam melhor do que eu falavam da minha terra que não conheci. Falavam das esplanadas em que se convivia todas as tardes, do pratinho de camarões que vinha com a cerveja, como cá costumavam vir os tremoços. Falavam de um céu mais estrelado do que o do Hemisfério Norte, e no som reconfortante de uma fogueira a crepitar no silêncio do mato. Falavam do cheiro da terra molhada depois das chuvas. Falavam das mulheres tribais que vinham à mercearia de quando em quando, magníficas na sua nudez negra, nos seus colares e pulseiras de desenho intrincado, nos seus penteados de bosta e lama, a espantar os turistas, que as fotografavam debaixo do olhar crítico dos locais, habituados a essas visões. Falavam das saudades de outra vida, e do que significou ser retornado, andar de casa em casa, de hotel em hotel, sem nada de seu. Ter esse nome, 'retornado', sem o compreender, por que a maioria não retornou, partiu da sua terra de nascença. Tê-lo, porém, como uma placa de ao pescoço, o sino do leproso, a marca do ladrão.

De Angola, lembro-me de um pátio e de um triciclo novo estragado, coisa de qualquer casa em qualquer lugar. Lembro-me de ter deixado, quando viemos, uma cadelinha com os seus cachorrinhos acabados de nascer, lembro-me de um berço no avião - a minha irmã era bébé - e lembro-me de algum lugar muito grande e ruidoso, que associei sempre a um porto. Esta parte pode ser assim ou não. De nada mais me lembro,  a não ser de andar de casa em casa e das soluções apressadas para a sobrevivência da família, vi como se estivesse lá todas essas coisas, lamentei e tive saudades. Coisa de português, decerto, ter saudades à toa, lamentar à toa. Ou de quem pinta quadros a partir das palavras. Estive no negrume profundo de uma noite no mato, com um céu iluminado de estrelas como tecto, e ouvi o crepitar da fogueira, senti o cheiro bom da lenha, e o cheiro bom da terra depois da chuva, e o cheiro da bosta nos cabelos das mulheres. E senti a agulhada do desprezo, do medo  do desconhecido. Do medo irritado dos portugueses e do medo desalentado dos 'retornados'.
 
Percebi uma coisa. Podia escrever um romance sobre isso. Podia. Tenho cá dentro as lágrimas dos outros para verter nele. Não sei se alguma vez o farei.

2 comentários:

Cristina Torrão disse...

Eu acho que seria uma boa ideia ;)
Se te esforçasses, eras bem capaz de te ir lembrando de mais coisas, o que, aliás, podia ser esgotante. Mas podia dar um bom romance, sim.

p7 disse...

Eu leria. Ando a ver aquela série da RTP1 que se passa em 1975 e que pega no dilema de quem veio de África e teve de enfrentar aqui uma vida muito diferente e, confesso, estou intrigada.