Ficou
sentado no alto da cratera, olhando para as labaredas que ainda lhe lambiam os
dedos. A sua dança, sensual como a de uma bailarina do ventre, ainda o
fascinava depois de tantos milénios. Flectiu os dedos de uma mão, depois
abriu-os de repente e a chama saltou, leve, viva. Viva. Destrutiva. Deixou que
os olhos escapassem das pontas dos dedos para a encosta do vulcão, pela
primeira vez desde que a bola de fogo branco subira sobre o horizonte,
tremeluzente e indecisa por trás da cinza. Atrás, o vulcão ainda rugia, fera
saciada recolhendo devagar ao seu covil. Toda a noite ele caçara, com uma
deliberação que era sua, do seu mestre, devorando tudo no seu caminho com uma
fome de séculos. Agora, o que os seus olhos viam eram restos. Restos de lava
incandescente, restos de vida.
Havia ali
uma floresta, que descia a encosta em verdes violentos. Ao fundo da ravina
abria-se em campos cultivados, e entre eles aninhava-se uma aldeia, umas
dezenas de casas de madeira e colmo. Homens e mulheres trabalhavam, amavam, crianças
brincavam e viviam e morriam, ano após ano, geração atrás de geração, diferentes
nas cores e formas, e no entanto iguais na sua alma. Agora, sob um céu negro de
fuligem e chumbo, o manto laranja e negro do vulcão cobria tudo, as suas servas
saltando dele, sobre ele, com ele, ardentes, crescendo livremente, correndo
sobre as coisas. Árvores tinham cabelos de fogo. Outras eram esquelos ossudos.
O casario transformara-se em poucos instantes numa sombra escura e descarnada,
sob a lava que descera veloz, e a cinza que ainda dançava no ar. Não se via
ninguém, mas ele adivinhava as estátuas abraçadas nas suas camas, contidas para
sempre nas suas casas. Para além da aldeia, a linha da costa, e o mar que rolava
e se erguia, um espelho revolto e obscurecido da sua própria raiva. Sorriu. O
seu irmão esquecia-se nessa manhã das suas próprias fúrias vingativas, para apontar-lhe
um dedo de sal. Pouco importava. Estava feito. Estava feito e pesava-lhe.
Era seu
por direito, criar e destruir na base do vulcão. Tantos anos o fizera, e os
homens tinham sempre reconhecido o seu poder com sacrifícos apaixonados e o
terror constante dos seus mais infímos suspiros. Não apreciava a carne humana
com que o gratificavam, mas devorava-a com o prazer de saber porque lha
ofereciam, enfeitada com flores e pavor. E era misericordioso, era rápido. E
generoso, segurava os seus servos e derramava fertilidade pelas encostas. Mas os
homens que o amavam tinham mudado. Tinham vindo outros, de outros lugares, com
engenhocas e muitas palavras, para convencer as gentes que era suas, suas, de que podiam prever os seus
gestos, reconhecer os sinais das suas fúrias. E os seus tinham acreditado no
que os olhos não viam, e deixado de subir a encosta em procissão, e deixado de
gritar para os céus os seus cânticos. Principalmente, tinham deixado de trocar
por vida a vida miserável das suas virgens. Já não o respeitavam.
As
labaredas arderam-lhe nas mãos com a intensidade da sua ira. Nem um humano.
Nenhum. Não mais se ouviriam cânticos, nem homens trabalhando a terra, nem
mulheres dando à luz. Com mãos de fogo esfregou o rosto, limpou os olhos, bateu
no peito que lhe doía. Contemplou a sua ilha vazia e negra e ergueu-se. Soltou
um urro que fez tombar rochas na montanha, reacendeu o coração das suas
labaredas mais adiante. Soltou a fúria e a dor e preparou-se para a solidão.
Porque um dia viriam outros homens para ocupar a sua ilha, mas ele sabia.
Trariam outras maquinetas e a presunção de saber quem ele era, e mais nenhum
lhe cantaria canções e lhe faria oferendas. E ele teria que mostrar-lhes a sua
alma indomável, guardar a sua liberdade. Pouco importava. A solidão servia-lhe melhor
do que a companhia dos homens arrogantes.
Suspirou,
alimentando pela última vez as chamas até fim da encosta, e lançou-se, de
cabeça, para dentro do vulcão que era a sua casa. Dormiria. Dormiria até que
viessem.
1 comentário:
Não acho que o blog perca o que for com estes textos maravilhosos
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