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quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

Traz-me a mamã no Natal


Era o seu primeiro Natal ali. Tardou a aperceber-se da sua chegada, tão perdido estava ainda na confusão da ausência, da nova vida e da nova escola. Era tudo tão diferente,  não entendia nada. Aprendera tantas coisas novas, como estar só e como existir secretamente, sem chamar a atençãodos professores ou dos outros rapazes, numa escola tão grande que ainda o fazia tremer todas as manhãs,  mas elas calavam-se lá dentro, esmagadas pelo punho do medo, pela necessidade de calá-lo, de calar as perguntas que o sufocavam. Aprendera a reconhecer esse momento em que a garganta se fechava e a questão disparava na sua cabeça, de surpresa. Só queria saber onde estava a mãe, e isso ninguém lhe dizia. Os dias corriam, despidos da sua modorra de verão, e ninguém lhe dizia nada.
Quando finalmente reparou  nos enfeites coloridos e luzes de todas as cores nas montras das lojas, e começou a ouvir os amigos da escola a falar sobre prendas e festas, Francisco sentiu um lampejo de esperança. Era Natal! Natal! A mãe ia voltar para o passarem todos juntos. Talvez, até, para o levar para casa com a Nathalie e o pai.
Não. O pai não. Tinha uma voz na cabeça que lhe dizia que o pai não podia vir. Imaginou-o num lugar qualquer a descobrir coisas secretas e maravilhosas, como uma maneira de chegar depressinha a Marte, para lá viverem quando a Terra estivesse cheia. Por isso é que os homens tinham vindo, porque ele era preciso para salvar as pessoas. Mas a mãe viria. Ficou à espera de que, a qualquer momento, a avó anunciasse que a ela tinha telefonado, ou mandado uma carta, a dizer que estaria ali a tempo, com os braços carregados de presentes.
Não me importam os presentes, pensou. Não queria nem carros, nem livros, nada, desde que viesse buscá-lo. Sentia-se mal naquela casa triste. Sentia tanto a sua falta, mas sentia mais ainda o frio que fazia nas casa dos avós. É melhor escrever ao Pai Natal. E rezar ao menino Jesus.
Escreveu a carta, muito atento por causa dos erros. Surrupiou um envelope da escrivaninha da avó e redigiu com cuidado o endereço, “Pai Natal, Polo Norte”. Sentiu uma vaga de incerteza ao olhar para o envelope. Chegaria? Levou-a aos correios e perguntou à senhora que o atendeu. Ela sorriu-lhe.
- Pois claro que chega! Toda a gente no Polo Norte sabe onde fica a casa do Pai Natal. – respondeu animadamente, e prometeu –  A carta vai chegar num intante. Mas põe o teu remetente para ele não se enganar.
Fez como a senhora disse, escrevendo com desvelo o remetente, o seu nome e a morada dos avós, para que o Pai Natal não se enganasse. Não queria que mandasse a mãe para uma casa onde já houvesse uma e ninguém a quisesse, quando a ele lhe fazia tanta falta que tinha um buraco no peito. Terminada a tarefa, lambeu com cuidado a banda de cola no envelope, deliciado com o sabor amargo a vitória antecipada, e entregou-a orgulhosamente à senhora simpática.
Voltou para casa com o coração a rebentar de alegria e comeu o seu pão com marmelada do lanche com tanta satisfação como se a mãe já estivesse ao seu lado. O Pai Natal havia de fazer-lhe a vontade, afinal, não tinha pedido mais nada, não havia mais nada que quisesse. Para se assegurar de que era ouvido, nessa noite ajoelhou junto à cama, como a avó o obrigava a fazer todas as noites e, em vez de aldrabar as preces para poder ir dormir, demorou-se, rezou o melhor que sabia e acrescentou à pressa “Por favor, traz-me a mamã no Natal”. Não repetiu, o menino Jesus podia não gostar de rapazinhos pedinchões. Sonhou a noite toda com a chegada da mãe, os braços abertos para o abraçar com muita força. Cumprimentava os avós, que por uma vez haviam de sorrir, e comiam o bacalhau todos juntos. Abriam os presentes e, quando a festa terminasse, iam para casa, para Francisco poder dormir outra vez na sua cama.
A sua esperança principiou a desfazer-se quando a escola fechou para o Natal. Ainda não tinha chegado nenhuma notícia e já só faltavam dez dias. Nos primeiros dois ou três, esteve sempre atento ao telefone, espreitando discretamente o correio ainda fechado, em cima do tampo de mármore da mesinha de entrada. Mas as horas, os dias esgotavam-se e nada acontecia. Não sabendo nomear, em palavras de criança, esses sentimentos que lhe dividiam o peito, mas sentindo fundo o medo e a esperança e o desespero, ele engolia as lágrimas, agarrando-se à ideia de que ainda faltava muito tempo, nove dias, oito...  
Cinco dias e doía-lhe a garganta e o peito, como no início, tão apertado que mal conseguia respirar. Sentia as lágrimas, mas não chorou, o céu fazia‑o por ele. O som da chuva lá fora, porque por esses dias chovia interminavelmente, soava exatamente ao rio tumultuoso que lhe corria por dentro, sem que ele soubesse dar-lhe um nome. Talvez o menino Jesus, incapaz de atender o seu pedido, chorasse de frustração. 
E porque é que a avó ainda não tinha ido comprar o bacalhau, como a mãe fazia todos os anos, logo a seguir a montar a árvore de plástico e pendurar os enfeites? Não havia árvore na casa dos avós, Chico quase se ofereceu para a arranjar ele próprio. Até ia com a avó à loja, se ela quisesse, nesse Natal não desejava outra coisa que não fosse esse peixe que nem parecia peixe, com as couves que sabiam a meias sujas...  desde que a mãe viesse, comeria dez quilos de bacalhau e couves com um sorriso na cara. Também  podia ajudar a avó a fazer rabanadas, gostava de rabanadas, e filhós. Espreitou na despensa e em todos os armários, pensando que talvez a avó tivesse ido às compras há muitos dias, enquanto ele estava na escola, mas não havia nenhum bacalhau nem uma couve gigante num alguidar no chão. Mas pelo menos havia um Presépio de porcelana em cima do aparador, o menino com a Maria e o José, uma vaca e um burro, todos muito feios mas terrivelmente benvindos. Significavam  que a avó sabia que era Natal. Mas então, porque não acontecia nada?
Quando a televisão dos avós começou a mostrar imagens dos presépios no país, cheios de figurinhas, muito mais bonitos do que os do aparador da avó, apesar de lhes faltar a cor, não aguentou mais. Foi ter com a avó, que terminava o jantar na cozinha, e sentou-se perto dela num banco, muito quieto. A avó lançou-lhe um olhar rápido, e foi espreitar para dentro de uma panela. Francisco levou algum tempo até ter coragem para falar, e a avó também não o encorajou.
- Avó? – acabou por chamar, timidamente.
- Se tens fome, estou mesmo a acabar. Vai lavar as mãos.
- Sim, avó, vou já. – hesitou – Vó?
A avó franziu-lhe o sobrolho, mas não havia energia na sua reprimenda.
- Posso perguntar... vó, o que vamos cear no Natal? Não é bacalhau? – a pergunta que tinha a engasgá-lo era outra, mas não tinha palavras para ela.- O avô não gosta?
A avó levou uns segundos até lhe responder.
- O avô gosta de bacalhau.
- Que pena – suspirou ele – pensei que se calhar ceávamos outra coisa.
- Ceamos o habitual, Francisco.
Foi a vez de Francisco franzir as sobrancelhas. O coração batia-lhe no peito.
- Ó avó, mas... e as rabanadas?
- Não há rabanadas.
- Nem filhós?
- Não.
- Nem...
- Não, Francisco, não há rabanadas, filhós, sonhos ou qualquer outra sobremesa. Cá em casa, vai-se à missa do Galo e pronto.
Francisco não conseguia conceber um Natal que não era Natal, mas era isso que a avó lhe estava a dizer, que ali em casa era como se não houvesse Natal. E, se ele não existia, como é que a mãe podia vir celebrá-lo com eles?
- Mas é Natal, avó. No Natal há sempre uma ceia, e presentes, e...
- Queres um presente, é isso? – a avó aproximou-se dele e arranjou-lhe a gola alta da camisola – Diz lá o que queres, pode ser que se arranje.
- Não, vó, não é preciso! Já pedi ao Pai Natal, mandei-lhe uma carta e tudo! – um grande suspiro rolou-lhe pelo peito, incontrolável, e confessou – Eu não quero um presente, vozinha... só queria que a mãe viesse.
A avó abandonou a gola e, por um instante, pareceu a Francisco que os seus ombros tinham descaído um pouco mais. Depois endireitou-se, e a sua expressão era tão séria que Chico estremeceu. Engoliu em seco sem se aperceber, ou talvez engolisse as lágrimas que não queria chorar mas teimavam em querer sair.  A avó puxou uma cadeira e sentou-se à sua frente.
- Francisco, a mãe não pode vir. Ela... – respirou fundo – A mãe foi trabalhar para o estrangeiro. É muito longe e a viagem é muito cara. A mãe não vem, Francisco.
- Mas é Natal, - protestou ele, com as lágrimas quase a cair – e eu pedi ao menino...
- O menino Jesus não pode ajudar-te, Francisco, nem o Pai Natal, nem ninguém. Não chores, Francisco, que chorar não vai trazer-te a tua mãe. – limpou-lhe as primeiras lágrimas – As lágrimas, por muitas ou sentidas que sejam, não nos devolvem os que nos deixaram.
Francisco não percebeu  inteiramente as suas palavras, mas percebeu o essencial: a mãe não ia voltar, nem neste Natal, se calhar nem no próximo... estava longe. Tinha-o deixado ali e não vinha buscá-lo. Quase disparou “Avó, ela nunca mais volta?”, mas o rosto da avó estava fechado, tão triste, a olhar para ele como se soubesse que lhe doía o buraco no peito e lhe apetecia chorar para sempre.
Levantou-se do seu banco e secou as lágrimas com as mãos.
- Não faz mal, avó. – desviou o olhar dos olhos cansados da avó – Vou lavar as mãos para o jantar.
Não voltou a falar da mãe nem da ceia nem de nada. Nem voltou a rezar, nunca mais, afinal nem no Natal o menino Jesus o ouvira. Quando a véspera chegou, cearam carne assada com batatas, no mesmo silêncio que preenchia quase todos os minutos naquela casa, e foi autorizado, excecionalmente, a ver na televisão os programas de Natal. Viu-os, sentado no sofá ao lado da avó, mas não estava lá. Estava perdido na escuridão, ardia-lhe a garganta com o esforço para secar lá dentro o rio que o ameaçava. Estava decidido, numa determinação sem palavras, a nunca mais chorar. Como dizia a avó, as lágrimas não serviam para nada. Quando chegou a hora, vestiu o casaco e pôs o cachecol e o gorro, e sairam os três de carro para a missa do Galo. Não ouviu o que disse o padre, mal ouviu as canções que, no ano anterior, o tinham deixado tão feliz que saltitara todo o caminho para casa. Sentou-se e levantou-se com as outras pessoas, e saiu para o ar gelado da noite, caminhando devagar à frente dos avós.
O regresso a casa na quietude da noite, com o carro a roncar, devia tê-lo deixado com sono, mas Francisco não conseguia dormir. Encolheu-se, aconchegando inutilmente o casaco contra o frio horrível nos ossos. Queria encontrar uma maneira de sentir-se mais quente por dentro e por fora, mas a noite era vazia e escura e ele não sabia como fazer. Só sabia que estava sozinho. Em casa, tirou e pendurou silenciosamente o casaco no cabide e deixou os sapatos junto à porta de entrada, como era a regra do avô para rapazes descuidados que podiam trazer lama nas solas, mesmo no verão quando não havia lama em lado nenhum. Disse boa noite, deu um beijo à avó porque, apesar de tudo, ela era boa para ele, e foi para o quarto.
Em cima da mesa de cabeceira, estava um pratinho com uma rabanada dourada e cheirosa, e uma caixinha embrulhada em papel colorido, com um laço azul em cima. Abriu a caixa sem entusiasmo. Lá dentro, brilhava um carrinho de plástico vermelho. Tirou-o e pousou-o na prateleira, ao pé dos livros da escola.
A rabanada, não a comeu. Estava enjoado. Ia continuar enjoado muito tempo

(de A Chama ao Vento, nome provisório. texto por rever)

6 comentários:

Marg disse...

Lindo, Carla! Consegue fazer-nos sentir a dor da ausência, da morte, na alma de uma criança! Não sou de lágrima fácil, muito pelo contrário, mas conseguiu por-me uma a espreitar...

E quanto a mim não precisa de muita revisão.

Carla M. Soares disse...

Obrigada!
Faz parte de um original que ainda está à espera de uma boa revisão. ;)

Unknown disse...

Angustiante. Gostei. Mas é duro...
bjs
Patrícia

Olinda Gil disse...

oh pá, tão triste, não vale!

Carla M. Soares disse...

Triste bom, ou triste mau? ;)

Olinda Gil disse...

Triste bom