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sábado, 17 de novembro de 2012

Eva (parte 1 de 2)

Inspirada por uma conversa no Facebook com o autor Vitor Frazão, aqui está a primeira parte de mais uma das minhas (escassas) incursões pelo conto. Prometo que serão só duas partes, não massacro muito.
 
Desculpem qualquer coisinha, que a minha experiência em textos curtos é muito insípida!
***
De longe ouvira-se nssa manhã o chamamento. Abrira os olhos devagar, preguiçosa, frágil, para escutar as vozes de homem que gritavam:
“Vem!” imploravam “Vem matar a nossa fome! Vem saciar a tua! Vem que te esperamos e estamos cansados de esperar!”
Levantou-se, com esforço. Estava fraca. Tinha perdido a conta aos dias que jejuara, quieta na profundidade da floresta.  Cinco, dez, uma estação? Fora tanto, uma estação? Sim. O seu corpo avisava-a de que dormira demais, de que o frio se estendera e tinham ardado a chamá-la. Moveu os dedos, finos como galhos, as articulações estalaram dolorosamente. Olhou para baixo, para a perfeição invariável do seu corpo, mesmo na sua magreza, para os pés transformados em garras disformes, tocou nos cabelos, brancos, leves como flores, convolutos, livres, cada fio uma entidade. Não brilhavam, agora, não se agitavam,  protestavam com a sua mudez contra o excesso de sombra e frio e contra a fome a que os obrigara o longo Inverno. Lembrou a si própria que era assim mesmo. Era a sua vida.
Saiu devagar do seu esconderijo de Inverno, junto a um carvalho vasto e antigo, cujos ramos retinham a neve muito acima da sua cabeça branca.  Sorria-lhe quando ela chegava, deixava-a aconchegar-se, e inspirava profundamente, agitando o solo, até ela sentir os cabelos a levantar e a roçar o seu rosto velho e duro. Depois ele exalava um suspiro satisfeito, que deslizava como uma brisa preguiçosa pela floresta, e adormecia para o seu longo sono de velho. Era velho, mas era homem, rendia-se a ela como todos os homens, oferecia-lhe proteção em troca do seu perfume, uma coisa de nada. Dobrou com cuidado o corpo ressequido e duro sobre as águas do lago. Sorriu, quebraram-se os lábios, a cabeleira revolta pesou-lhe. Mas estava tudo certo. O resultado era perfeito, perfeitamente horrivel como a cada ano. Recebê-la-iam de braços abertos, ansiosos para saciar a sua fome. As suas fomes. Ergueu-se, feliz, e sacudiu-se. Alguns cabelos soltaram-se, e tombaram como petalas no chão lamacento.  As neves do Inverno já não calavam o sussurro da natureza, e nessa tarde o Sol estava alto e aquecia. Nas aldeias elas eram esperadas. Imaginou cada uma das suas irmãs percorrendo os caminhos, sentiu-as lá.  Era hora.
As pernas bambas tardaram a levá-la à orla da floresta, para lá da qual a esperavam os campos cultivados. Espreitou, para saber se a esperavam, como faziam todos os anos, como deviam fazer seu dever, como era o dela ceder o seu corpo à seiva da vida, florescer e fazer florescer. E lá estavam, sentados num grande semicirculo, os homens à frente, primeiro os jovens e depois os outros, os rostos esperando ansiosamente, amorosamente. Mais atrás as mulheres também se sentavam, raparigas receosas, mães com os olhos assombrados pelo medo, segurando com garras frágeis os seus rapazes que cresciam.
Avançou e um múrmurio de reverência e pavor, o espanto repetido da sua presença, como se temessem que, desta vez, não viesse. Um dia talvez não quisesse vir mais. Um dia talvez se cansasse se deixasse definhar, ou se fizesse igual a eles e escolhesse um homem e o guardasse para si. Mas agora não. Agora ainda não. Sorriu-lhes, sentiu o suspiro colectivo, o inflamar do sangue, o desejo que se propagava como uma onda colectiva e a preenchia.
Em breve, prometeu com o olhar. Primeiro as mulheres. Levantou os braços, os homens agitaram-se. Falou:
“Sosseguem os corações, que os vossos filhos são os meus filhos, os vossos homens os meus homens, sementes das nossas vidas. Vocês são as minhas filhas, discípulas dos meus encantos, meu espelho e negação. Não vos quero mal. Sabem o que tem que acontecer, sabem o que pede a Mãe de nós todos. Sabem que farei vida e essa vida chegará a todas.”
Uma mãe ergueu-se com a criança nos braços e voltou-lhe as costas. Depois outra e outra e outra, até serem uma parede de humilhação e dor, de fúria ardendo alta, de lamento antecipado por um dos seus maridos, um dos seus filhos. Suspirou. Às mulheres jamais encantaria com a sua voz de brisa nos ramos das árvores, com o seu perfume de maçã. Aos homens, então.

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