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terça-feira, 16 de outubro de 2012

areia no bucho um olhar de nada

Não tinha nada que fazer nessa manhã. Por isso enrolou a trouxa e partiu. Levava um naco de pão e três dedos de coragem, uma pinga de aguardente a fazer de sangue nas veias.
 
Em três dias tinha corrido a europa. Subido picos, descido vales, calcorreado o alcatrão das estradas, as pedras dos passeios, o mármore dos museus. Visto a mão dos artistas escorrendo imagens. Na quarta madrugada fez um desvio à direita e desceu por planícies arenosas e vales verdejantes de arroz e sentiu a camisa velha colada às costas. Trocou o naco de pão por uma pitada de caril com que temperou a língua e foi correndo, correndo, e olhando com o olho que trazia no centro do estômago e não mostrava a ninguém.
 
Entrou pelo princípio do mundo sem saber como, perdeu o coração numa cubata entre as pernas de uma mulata filha de outro que um dia lá andara de arma em punho. E seguiu e foi saber o que traziam as mulheres por trás da máscara de pano e como faziam os homens quando os filhos perdiam as pernas, e de que se alimentavam os que viviam de areia. Trocou caril por areia e inchou-lhe a barriga.
Rolou pelo mar a fora no esguicho de uma baleia, e escorregou por planos de gelo que se perdia na corrente até à terra dos calores, e agarrou-se com garras de ferro a um vento feroz prenhe de chuva que desabou sobre dois homens que cantavam blues. Os homens morreram ali mesmo esmagados pelo buraco escuro. Um buraco. Não seguiu mais. Caiu por ele. Caiu . Caiu . E aterrou.
 
Tinham passado sete dias e ele trazia a trouxa vazia, a camisa rota e suada colada ao corpo e o bucho pesado de areia fina. Trazia o olhar cheio de nada e e aguardente do sangue ardida. E continuava sem nada para fazer. Enrolou-se num cobertor carcomido, deitou-se sobre o cartão da véspera tapou-se com^três dia de jornais e fez o que fazia melhor. Adormeceu.

1 comentário:

Ivonne Zuzarte disse...

comecei a ler no outro dia, mas acabei-o hoje ;)

Eu não tenho formação e por isso a minha opinião é amadora, mas gosto da escrita... Enfeitiça-nos. Enfeitiça-me! A mim!

É um texto triste. Bem escrito, mas triste, solitário... gostei especialmente desta parte "Trazia o olhar cheio de nada e e aguardente do sangue ardida. E continuava sem nada para fazer. Enrolou-se num cobertor carcomido, deitou-se sobre o cartão da véspera tapou-se com^três dia de jornais e fez o que fazia melhor. Adormeceu.".