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sábado, 22 de setembro de 2012

Um excerto...

de um outro livro meu, de fantástico, que provavelmente nunca verá a luz do dia.

(uma jovem mulher caminha para casa, junto ao gradeamento de um parque, depois de assitir às aulas nocturnas para adultos)

Caminhava tão depressa quanto podia quando o grito agudo, um grito aterrado de mulher, a congelou no lugar. Ficou estática, todos os músculos trancados no lugar e imóveis, menos o coração, que disparou dolorosamente, batendo com tanta força contra as paredes do tórax que talvez o peito explodisse. Pousou uma mão sobre ele e ordenou‑lhe em vão que se acalmasse.
“Mexam-se.” Ordenou em seguida às pernas “Vamos. Corram!”
Nada. Ficou parada, tremendo. O terror não a deixava pensar. Um novo grito soou, mais próximo,  mais desesperado e...céus. Urros baixos, selvagens. O que era aquilo? Animais? Grunhidos, de mais do que um...um qualquer coisa, e o som de algo a arrastar. Algo a rasgar. Tecido? Pele? Foi sacudida por um arrepio.
“Não fiques aqui. Corre!” pediu a si própria, à beira das lágrimas. “Pede socorro.”
Soluços, um gemido. Luta, algo a cair pesadamente sobre a folhagem. Deus, o que estavam eles a fazer-lhe? Outro pequeno grito, já sem intensidade. Quantos segundos...séculos tinham passado? Há quanto tempo estava ali parada? Mais rosnidos e depois, nada. Um silêncio horrendo, não, não era bem isso. Havia ruídos que não conseguia interpretar. Mas moviam‑se. Mais perto do que antes, demasiado perto.  Ali mesmo, do outro lado da vedação.
“Merda, mexe esse traseiro!” gritou para si própria, tentando dominar o pavor.
Desta vez, as pernas obedeceram. Desatou a correr, mas, como num pesadelo, quanto mais corria, mais distante parecia ficar o fim da rua. Socorro, tinha que pedir socorro. Abriu a boca para gritar, mas o único som que saiu foi uma espécie de coaxar. Oh, não. Telemóvel. Polícia. As ideias vinham aos sopetões, mas era o melhor que podia fazer enquanto corria. Ou se arrastava, que era a sensação que tinha. Os seus dedos trémulos procuraram o aparelho no bolso do casaco, e digitaram o número das emergências. O toque de chamada prolongou-se, aflitivo, enquanto May tentava desesperadamente convencer os pés a mover‑se mais depressa. Suava, apesar da noite estar fresca, sentindo a dureza do passeio debaixo dos ténis. Queria ser mais rápida, ainda faltava muito para a esquina, para deixar para trás a sombra das árvores do lado de lá das grades. A sua rua e a proteção da sua casa estavam mais próximas, mas o resfolegar de várias respirações pesadas aproximava-se ainda mais depressa. Estavam perto, do lado de lá das grades. May tremia e os seus os joelhos cediam a cada meia dúzia de passos. Foi sacudida por um vómito incontrolável, mas o estômago estava vazio. Não conseguia tirar o grito da cabeça, queria pedir ajuda para si própria, para a mulher, mas ninguém atendia. Tropeçou, e o telefone saltou-lhe das mãos e aterrou no meio do asfalto. A dor trouxe-lhe lágrimas aos olhos. Tropeçou outra vez ao tentar desesperadamente levantar-se para o alcançar, e caiu de joelhos, arfando. Novo vómito em seco. As lágrimas de dor e frustração toldaram-lhe a visão. Oh, céus, agora também não conseguia ver.
Mas conseguia ouvir. Um raspar metálico soou como um alarme na sua cabeça,  propagando-se pelo corpo numa descarga brusca de adrenalina. O pânico disparou quando o som foi substituído pelo embate seco de botas no passeio. Uma, duas vezes. Mais. Levantou-se de um salto. Alguém... alguma coisa rosnou mesmo nas suas costas.
O grito formou-se na sua cabeça mas nunca chegou à garganta. May sentiu a dor mesmo no meio das costas e o chão a fugir-lhe de debaixo dos pés, conforme a pancada a projetou. Aterrou um metro adiante, de cara no chão. Os braços e pernas absorveram o primeiro impacto, e depois a cabeça bateu com força na berma do passeio. Por longos momentos, não soube exatamente onde estava nem o que estava a acontecer. Uma névoa escura toldou-lhe a visão e um zumbido alto impediu-a de ouvir. Fechou os olhos cegos, quando um nova náusea a sacudiu. Levou os dedos trémulos à testa, de onde uma dor intensa irradiava para todos os pontos da sua cabeça. Sentiu o líquido quente e espesso. Confusa, perguntou-se porque teria a cabeça molhada. Não estava a chover. Estava? Grunhidos de excitação trouxeram-na bruscamente de volta à realidade. Oh, deus, o que era aquilo? Que espécie de animal produzia aqueles grunhidos, os sons aspirados, o sibilar? Que espécie de animal tinha dedos? Dedos ásperos nos seus braços, garras afiadas enterrando-se na carne. Mal as sentiu, estava dormente de pavor. Sem reação, foi levantada no ar e atirada. O impacto doloroso do corpo a embater contra a superfície dura e irregular do passeio roubou-lhe a respiração, uma ponta aguçada a rasgou-lhe a pele do braço. Mais rosnados e assobios. Rodearam‑na, penetrando como dardos a sua dormência. Pontos de dor. No braço. Na cabeça. Noutros lugares do corpo. Uma sensação de viscosidade no rosto e no corpo. Mãos nodosas, àsperas, na sua pele. Com um estalo, a sua visão voltou.
Lava ardia nos quatro pares de olhos encovados, vermelhos, que a fitavam com selvajaria, plantados em rostos pálidos e longos, esquálidos, de ossadas visíveis sobre a pele demasiado esticada. Lábios enegrecidos recuavam ferozmente sobre...oooh, não eram apenas dentes estranhos, pensou com um estremecimento de puro horror, mas presas, longas como as de um predador, de um grande gato, manchados de..era sangue? Sangue fresco, que brilhava de forma macabra e se acumulava nas extremidades e em torno da boca. A mistura de saliva e sangue pingou sobre o seu rosto, o seu odor fétido a marcá-la até à alma. Arfou de horror e o peito doeu-lhe. Quis fechar os olhos e não conseguiu, o seu cérebro congelado registava mas não era capaz de reagir. Desejou ardentemente continuar desmaiada, estar inconsciente quando eles...as coisas...aquilo...
Um longo gemido soltou-se da sua garganta, crescendo até formar finalmente o grito que há pouco não conseguira soltar. A voz que ouviu, atravessada pelo terror, não parecia a sua. Depois, os dedos nodosos cobriram-lhe a boca, silenciando-a.
“Meu deus, meu deus. Eles vão... o que é que eles vão fazer-me?”
Ouviu, mais do que sentiu, as suas roupas a serem rasgadas. O frio da noite penetrou a sua dormência, entrou-lhe nos ossos, fê-la tremer. Ou talvez fosse uma nova onda de medo. Ia morrer. Aquelas coisas iam matá-la. Uma onda de náusea. Outra. Apercebeu-se vagamente do passeio àspero debaixo do corpo, quando a arrastaram. O seu corpo sacudiu como uma boneca de trapos, ao ser atirado sobre um ombro ossudo. Um odor fétido penetrou-lhe nas narinas, mas May não se encolheu. Ia morrer. Era a única coisa que o seu cérebro sabia. Sacudiu mais um bocado, a cabeça latejou de dor ao embater nas ossadas duras. O corpo cortou o ar, caiu dolorosamente com um estranho som seco. O cheiro da terra foi inesperado e despertou-a ligeiramente.
“Trouxeram-me para o parque? Como?”
Lágrimas quentes brotaram, misturando-se com o sangue espesso que continuava a correr-lhe do golpe na testa. O odor limpo do solo misturava-se com o fedor a podre dos monstros. O seu estômago embrulhado tentou esvaziar-se outra vez, quando os dedos gelados, repugnantes, lhe ragaram a sweat para chegar à pele, braços, barriga, pescoço, seios. Garras afiadas abriram sulcos na pele nas coxas quando os jeans seguiram o caminho da camisola.
“Não, isso não. Não. Por favor...não.”
Tentou resistir, estrebuchou e lutou, mas eles eram tão forts e os seus esforços não detiveram nem as mãos, nem os grunhidos e gemidos que a aterrorizavam, nem os olhos como carvões acesos. Queimavam até à alma. Não queria olhar, não queria vê-los mas agora estava desperta, em pânico, e não conseguia deixar de sentir, com uma clareza chocante, tudo o que eles faziam. Tudo. Tantos locais no seu corpo, já quase sem roupa, doíam, que não sabia exatamente onde a dor começava e acabava, mas mesmo assim as unhas continuavam a arranhá-la na barriga, nas coxas, nos braços, a fazer sangue, e quanto mais sangrava, mais excitadas ficavam as criaturas.
Depois, subitamente, os dedos fecharam-se em torno dos seus tornozelos e puxaram, deixando-a exposta. Treparam pelas suas pernas em direção a...
“Oooh, deus, não. Não.”
- Por favor.
Desta vez, ouviu a sua própria voz, rouca, desesperada. Um terror profundo sacudiu-a. As mãos nodosas exploravam as suas coxas, tão perto, demasiado perto, roçando o tecido fino que ainda a cobria. Algo aguçado roçou a pele do seu pescoço. Uma lâmina? As horrendas presas? Oh, céus. Subitamente, soube a verdade. Soube exatamente o que eram e o que queriam as criaturas, e que Brenda estava errada e eram horrendos. Iam consumi-la, fazê‑la sofrer antes de a matarem. Lutou, para ver-se pregada ao chão por joelhos e mãos. Desejou morrer. Depressa, antes daquilo que eles...o que eles iam fazer.
“Por favor.” implorou. 
Ocorreu‑lhe, num último pensamento coerente, que aquilo tinha morto o tal casal. As outras mulheres, a Katie. As imagens que as descrições de Brenda haviam conjurado tantas vezes no seu cérebro invadiram-no, numa sucessão de flashes sangrentos. Era mais do que podia suportar. O seu corpo sacudiu numa convulsão de puro pânico e deslizou para uma abençoada inconsciência.
Uma voz feral gritou uma obscenidade, uma palavra completa e nítida que a atravessou e a sacudiu, arrancando-a do seu estado de dormência. Regressou com um estremecimento brusco e nova náusea e sentiu, de imediato, os dedos e os dentes. Mais um segundo, e iam mordê-la. Mordê-la e invadir o seu corpo. Fechou os olhos com força. Não, não, por favor, não queria estar acordada para aquilo. Não queria estar viva para aquilo.
 
E pronto. Um LOOONGO excerto.

3 comentários:

Ana C. Nunes disse...

Gostei muito deste excerto. Conseguiste transmitir bem a aflição da personagem e descreveste bem as emoções e o medo. Não me importava de ler o resto. :)
Só achei que por vezes os 'diálogos/pensamentos' dela cortavam um pouco a acção.
Mas de resto, bom trabalho. Não é fácil criar o medo no leitor, mas tu conseguiste.

Carla M. Soares disse...

É um excerto praticamente sem revisão nenhuma, Ana, não tem afinado esse equilibrio entre as coisas, nem sei bem se virá a ter ou não. Foi uma experiência com histórias de vampiros, com imensos disparates pelo meio, lamechices, coisas que preciso mesmo de rever nos conceitos da história, no que está no centro da narrativa.

De qualquer maneira, se quiseres ler assim mesmo, com as parvoíces que eu já sei que tem, e dar-lhe esse desconto, é só dizer. É um livro muito longo para ler no ecrã, mas como a Ana Ferreira também ficou curiosa, dividi-o ao meio e mandei-lhe as primeiras 270 páginas. Diz qualquer coisa.

Olinda Gil disse...

Porque achas que nunca verá a luz do dia?