Páginas

domingo, 8 de julho de 2012

Doida varrida

Este micro-conto foi inspirado por uma frase que a Sandra Sousa, do blogue Mil Estrelas no Colo, deixou no facebook, acerca de uns quantos de nós, leitores, falarmos sobre as personagens dos livros como se fossem reais. Ficou um pouco longo, mas espero que não aborreça.





    Estava mais do que habituada a conversas estranhas na livraria. Acontecia sempre que me sentava à mesa para um café ou para lanchar. Alguém se sentava na mesa ao lado, com um livro aberto. Por vezes, conversava sobre o que estava a ler com quem o acompanhasse. Outras vezes consigo próprio, e já houvera quem falasse comigo, ou com o livro. Nada disso me surpreendia: eu era igual. O livro era uma coisa viva nas minhas mãos, nas deles também, porque não?
    Nessa tarde sentei-me sozinha, como gostava de fazer, com o volume que pensava comprar aberto na primeira página. Era longo, pesado em todos os sentidos, e eu mal podia esperar para pôr os olhos em cima dele. Não durou cinco minutos a minha atenção. Mal sorvera dois goles de café e ainda não acabara de ler o primeiro parágrafo, terrivelmente longo por sinal, quando uma voz queixosa chegou aos meus ouvidos. Sintonizaram automaticamente, habituados como estavam a 'pescar' pedaços interessantes de conversa.
    - Mas é que ele não me deixa, queridas! - lamentava-se uma jovem pálida, de cabelos muitos negros e lábios vermelhos. Pensei que tivesse exagerado no batom, mas um segundo olhar repôs a verdade: eram assim mesmo.
    - E então? - A que falava agora encolheu os ombros delicados. Tinha um ar cansado, olheiras debaixo dos belos olhos. 
    - Imaginem, uma mulher de trabalho como eu, - continuou a primeira - acostumada a cuidar de sete homens, sete, sem nada para fazer há anos senão aperaltar-me!
    Observei-as o mais discretamente que pude. Eram cinco, todas jovens e belíssimas. Por momentos, achei que estivesse perante uma reunião de supermodelos, mas só uma era suficientemente alta, nenhuma era assim tão magra e todas tinahm um ar demasiado etéreo. Semicerrei os olhos. Seria possível cinco amigas serem todas igualmente belas? Mais curiosa do que alguma vez estivera, e sem culpa nenhuma, recostei-me a ouvi-las.
    - Tens que impôr-te, querida Branquinha, ou vão continuar a fazer de ti uma marioneta. Eu - disse a alta - vou cortar o cabelo.
    Notei que trazia o cabelo louro enrolado num farto nó na nuca.
    - O teu lindo cabelo! - protestou a pálida - Tens coragem?
   - Qual coragem? Tu sabes quanto tempo é preciso para cuidar disto - remexeu o nó com as pontas dos dedos - dois metros de cabelo, todos os dias? E o que doi desembaraçá-lo? E os litros de condicionador que gasto todos os meses? Naa. Quero um penteado moderno, com franja.
    - E eles deixam, Rappy? Os teus?
    - Quando souberem, está feito. - riu-se baixinho, determinada - Lembrem-se que eu fugi de uma torre, sou bem capaz de tomar as minhas decisões.
    - Fugiste?! - riu-se uma mais pequena, vestida com um belo casaco vermelho - Salvaram-te!
    - Sabes muito bem que isso é conversa. Como se eu deixasse um tipo de 90 quilos trepar-me pela trança! E nunca, NUNCA tive dez metros de cabelo, deus me livre!  Já cá estava em baixo quando ele apareceu, minhas queridas.
    As outras olharam-na em silêncio. Depois Branca voltou ao ataque.
    - Eu quero mesmo trabalhar. - reafirmou.
    - Faz voluntariado. - sugeriu a das olheiras, esfregando os olhos - Com crianças, ou assim, já estás habituada a gente pequena.
    - Ah, a minha alma está parva! Bela, minha amiga, tu fizeste uma piada? Tu? Estás bem disposta hoje? - perguntou a do casaco. Bela encolheu os ombros.
    - Esta noite deixaram-me dormir. Ai, meninas, nem imaginam o sono com que ando. Acordam-me constantemente, até durante a noite, como medo que volte a acontecer aquilo. Vocês sabem. - suspirou - Não sei como, a velha está presa há anos.
    - Está tudo errado, não está, nas nossas histórias? Anda esta gente toda enganada desde...
    - Isso não me importa. - afirmou uma jovem de cabelos louros e rosto delicado que ainda não se pronunciara. - O que eu gostava era que o presente fosse diferente. Estou fartinha.
     Fitaram-na com pena. Branca pousou uma mão sobre a da amiga.
     - Oh, Cindy, querida, então ele continua a ter um fetiche com os teus pés? Não passaram disso? 
     Ela assentiu, franzindo furiosamente o sobrolho.
     - Quem me dera! Faz-me calçar os malditos sapatinhos todas as noites, andar horas com eles, e depois fica para ali a pô-los e tirá-los e a beijar-me os pés... Olhem para isto! - Tirou um sapato e estendeu o pé descalço mais delicado que alguma vez vira. Tinha uma bolha feia no dedo mindinho - Estou a pontos de divorciar-me!
    Um ruidoso arfar colectivo fez-me encolher-me e tapar a boca com ambas as mãos. Por essa altura, achava que estava a alucinar. O que era aquilo? Por outro lado, apetecia-me desatar a rir, a rir sem parar. Era hilariante.
     - Não podes!- exclamou Bela - E o felizes para sempre?
    - Oh, pelo amor de deus! Alguma de nós é assim tão feliz? - resmungou Cindy - Mas quero uma bela pensão. Não tenho intenção nenhuma de voltar a esfregar o chão de ninguém.
     - Pois eu até isso fazia, se me deixassem - suspirou Branca - Tenho saudades dos meus rapazes.
     - Sortuda sou eu. - A do casaco vermelho apontou para si própria. Teria um nome? - Não há princípe nenhum na minha história para me obrigar a seguir os protocolos, nem para me fazer calos nos pés. Okay, não me deixaram andar à vontade no bosque durante anos, mas agora que sou crescidinha, faço o que quero. 
    - Não acho nada bem que persigas animais em extinção...- refilou Rappy.
    - Ora, não disseste nada disso quando enquanto andei atrás dos dragões!
    Rappy empinou o nariz.
    - Os dragões eram perigosos.
   - Os lobos também. É uma questão de ponto de vista. Bom, de qualquer maneira, já me deixei disso. Conheci um tipo mesmo interessante na Greenpeace.
    As outras desataram a rir.
    - Outra vez?
   -Pelo menos não é caçador! - disse Branca, com um arrepio visivel - Detestava quando andavas com esses tipos, são um perigo.
    - Eu gosto do perigo. - retorquiu a outra.
    - E eu também. - concordou Rappy.
   Não aguentei mais e desatei a rir. Alto, em gargalhadas violentas e deliciosas, como há muito tempo não soltava. Elas olharam para mim todas ao mesmo tempo.
    - Ai, desculpem, mas não posso. - consegui dizer, entre gargalhadas - Vocês são...não são? Não, pois não? Ai, estou mesmo maluca.
    - Pois, também me parece. - resmungou Bela, esfregando os olhos - Vou-me embora, estou a ficar cheia de sono.
    - Primeiro paga o livro, hem? Não faças como da última vez. - avisou Branca.
   Com um sorriso deliciado, Bela sacudiu no ar o volume do Na Sombra da Noite, da J. R. Ward. As outras suspiraram, extasiadas. 
   - Adoro vampiros. - declarou Branca.
   Quase caí da cadeira, de tanto rir. Elas olharam-me, parecendo ofendidas, e a de vermelho fungou alto. 
    - Não é nada bem educada, pois não?
    - É doida, coitada.
    - Sem dúvida. Doida varrida.







4 comentários:

Olinda Gil disse...

Que maravilha! Adorei como conseguiste conjugar no mesmo tempo a cómico, a futilidade, o encanto feminino e os contos tradicionais :)

Tânia disse...

Muito divertido! Gostei muito.

Marg disse...

Estou sem palavras, Carla!!!
Divinal!

Cristina Torrão disse...

Uma excelente ideia, muito bem :)