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quarta-feira, 4 de julho de 2012

Batalha

Mais um 'passeio' pelos mini-textos, desta vez num género de que gosto muito, mas em que há algum tempo não tocava.


     Estavamos por fim frente a frente, eu e ele, ele e eu. Num impasse, à espera ambos para quebrar a distância que há anos nos separava. Anos e anos, tantos que ele perdera o brilho e eu o cabelo, e os nossos joelhos tremiam, e esqueceramos ambos o motivo do nosso ódio. Há muito que tinhamos desistido de lutar, mas os nossos encontros estavam gravados em histórias e canções e havia um acordo tácito de que um dia, hoje, aqui estariamos.  
      Estava frio no cimo da falésia que ele escolhera e eu aceitara, para ser o cenário do fim. Parecera-me dramático em excesso, mas ele não podia dizer adeus noutro lado. Quando caísse, caíria do alto do penhasco para as profundezas, para que só nós soubessemos a verdade e a sua ausência prolongasse a nossa lenda.
     - Os homens precisam de lendas - argumentara, e eu não tivera força para negar.
     O meu corpo seria encontrado, depois da batalha, devastado e magro, velho. Ferido, decerto. Não lamentariam, sabendo que morrera como vivera, lutando. Morte honrosa. Seria untado e depositado sobre o meu barco e lançado em chamas, como mandava a tradição, para o centro do lago. Na margem, cantariam a minha vida de herói da aldeia, caçador de bestas. Cantariam a minha morte e perguntariam onde estava ele. Se o matara. Se desaparecera. Se nunca existira.
     Ninguém saberia que eu e ele partilhavamos a sepultura. Era assim que ele queria, assim que devia ser.
     Levantei a espada, minha e do meu pai e do meu avô antes dele, e o peso foi quase demasiado. Ele riu-se quando oscilei. Ou pelo menos tomei como riso o arranhar que lhe subiu das entranhas e lhe saiu pela boca cavernosa. Riso de velho. Senti alguma coisa dentro do peito e não era ódio. Estava acabado para ódios. Talvez fosse uma espécie de empatia. O reconhecimento do laço entre nós.
   - Que batalha será esta, hem, companheiro. - disse-lhe.
   - Será rápida. - grunhiu em resposta.
   Seria rápida e morreriamos os dois, era o que sabíamos. Nenhum tinha já a força para suplantar o outro, nenhum recolheria os despojos. Conservariamos ambos a cabeça sobre os ombros, as entranhas dentro do corpo, mas a nenhum elas serviriam. Esta era a nossa última hora.
    - É justo que acabemos juntos.
     Ele assentiu, um movimento lento e penoso, e levantou os braços esqueléticos. Tive vergonha por ele. Outrora, tinham sido poderosos. Rugiu, devolvi-lhe o berro, gritamos um com o outro até se nos esgotar a voz. Durou pouco e no fim rimo-nos, com amargura, da nossa fraqueza. Ah, que batalha esta!
     Eu avancei, a espada tão levantada quanto era capaz. Não me passava da cintura. Oscilei-a da esquerda para a direita, da direita para a esquerda, fiz-lhe um arranhão na coxa. Mal sangrou. Ele calou-se, cerrou as sobrancelhas, abriu a boca. Tinha poucos dentes, como eu, mas não eram os dentes que eu temia. Fechei os olhos, convencido de que lhe restava ainda qualquer coisa e chegara o fim. Afinal, sempre haveria um vencedor. Esperei, tremendo nas botas e rezando para, pelo menos, não morrer todo borrado. Esperei e nada, nem labareda nem fumo. Abri um olho. Depois o outro. Ele tinha fechado a bocarra e estava sentado a olhar para mim.
     - Estou cansado demais para isto. - resmungou - Acaba lá com a coisa.
     - Não pode ser. - recusei, dando graças aos deuses - Temos que lutar.
     - Não quero. Espeta lá isso. - pediu, apontando a garra amarela à minha espada - Podes levar um dos meus cornos, mas tens que me empurrar do penhasco.
     Sentei-me ao seu lado, desanimado. Larguei a espada. Os meus braços tremiam. Eu todo tremia.
     -  Não seria capaz, és pesado.
     - Já não sou. Olha para mim.
     Olhei. Tinha cinco vezes o meu tamanho e, esquelético ou não, pelo menos três vezes o meu peso. Desatei e rir, ele ele deitou-me um olhar de soslaio. O seu olho já não tinha a cor de esmeralde de outros tempos. Tinha cor de ranho.
     - Nem com esta bodega posso. - indiquei a espada - Não sou capaz.
     Ficamos os dois em silêncio.
     - Deviamos ter feito isto há anos. - conclui - Agora é tarde.
     - Hum.
     Levantei-me. Tive que certificar-me de que os joelhos se aguentavam antes de voltar-me para ele e lhe estender a mão.
     - Tréguas?
     - Até quando?
     - Até ao Outro Lado.
     Hesitou. Soprou, irritado. Já nem cheirava a enxofre.
    - Ninguém pode saber.
    - Evidentemente que não. Tenho a minha honra.
    - Muito bem. Posso viver com isso.
    - Ou morrer.
    - Ou isso.
    Estendeu um dedo, para que eu o apertasse. Como velhos amigos.







1 comentário:

Olinda Gil disse...

A velhice é inesperada num género em que é, tantas vezes, elevada a força da juventude. Gostei muito